21 de setembro de 2009

Quantos cafés você toma por dia?

Você sabe que não há escapatória. Você, contra a sua vontade mais íntima, se orgulha de levantar todos os dias, cinco deles no mesmo horário, e tomar da mesma marca de café, em goles rápidos, sufocando qualquer questionamento. Você já não distingue os gostos dos líquidos da manhã, pouco importa (“tem gosto de café, não tem? será que já não é o suficiente?”). Você ostenta que se compraz com a mesma carícia frouxa em indiferença, recebida antes de partir. Você alarde que sua segurança no cotidiano conforta. Você se vale da certeza da existência dos próximos cafés, propulsão dos atos cotidianos. Você espera ansioso o café do meio, da manhã e da tarde. Você gosta do prazer do mediano (“já não é o bastante?”). Café imediato com gosto de máquina. Você é profundo conhecedor das texturas de espuma, sempre as mesmas com pequenas variações impostas pelo estado do filtro. Você é mestre em transformar o incomodo do amargo em melado de açúcar refinado, para manter a excelência aparente de suas horas inúteis. Você pensa que suas várias e esquemáticas doses diárias de café podem conter a curva do tempo. Mas, você não pode. Contudo, ninguém tira a certeza de sua superioridade ao manejar cafés. Você acredita que pode falar em salvos e submersos como se fossem torrões de açúcar que você assenta em sua xícara. A condição é acaso, imposto somente pela consistência aleatória do líquido. Você, nas conversas, está sempre sorrindo, gesticulando com elegância controlada. Postura ereta para manipular o universo em sua xícara. Você pensa que a cada mexida controla a ordem e regula o ritmo das tormentas com o movimento de sua colher. Mantém a sua arrogância dolorosamente simpática ao olhar displicente para o lado e bater o instrumento metálico na borda de porcelana. Sutil tilintar. Você, antes de recostar a colherzinha no pires, verifica se não houve nenhuma gota desperdiçada. Afinal, você sabe que não é permitido. Você não pode consentir que o material confinado aquela circularidade encontre qualquer escape.

3 comentários:

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  2. como costumo pensar, se foi a intenção do autor (no caso, você), não posso afirmar... mas é uma perfeita analogia, uma ótima metáfora ao cotidiano mecanizado e satisfeito pelo sorriso amarelo do dia-a-dia que finge estar tudo em perfeita ordem e condição
    na pretensa ideia vazia que se fizermos algum um olhar torto e amarrarmos a boca perante algo desgostoso, equivocado, estúpido, idiota ou mesmo verdadeiro (e por isso ruim e doloroso) haverá um desmoronar do outro ou da relação que há com o outro...
    num eterno receio de não satisfazer ou de não corresponder às expectativas, agindo de forma a não assustar, não descuidar, não sermos indelicados... robotizamos as ações, maqueamos a realidade e mecanizamos as emoções... por que fazemos isso? bem, dai pra frente, pode ser uma mera questão ideológica, mas pode ser, muito mais do que isso, uma condição impossível de fugirmos: nós mesmos e nossa habitual cultura em conflito com nossa natureza enquanto seres humanos primordialmente meros animais...

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