Lá fora a cidade arde, alarde,
morde e cala. Fico aqui de dentro procurando também medidas preventivas
contra o caos. As máquinas de distrair estão cada vez mais bem
elaboradas para cumprir o propósito. Tenho redes sociais,
streaming, filmes, séries, wi-fi, câmera, dramin e esse cursor
piscando na página digital. Como pode?! A gente morar na maior
cidade da américa latina e qualquer chuvinha besta fazer a conexão
cair? Travar o tráfego? Mas, agora não chove mais. O tempo não
fecha, ele é de dura secura. Aumenta a poeira conforme diminui as
águas do sistema cantareira. Sinto alergias, rinites e essa pigarra
na garganta que sufoca minha voz e inadvertidamente desentope
desopilando o fígado. Bilis ou bliss? Senhoras e senhores: põem as
mãos no chão. Aqui é pimenta, pimentinha temperada na cozinha: com
sal, arroz, e feijão: porções de ração humana. Você é o que
você come, eles dizem. Os fatos do mundo me circundam. Rodeiam e me
adoecem. Sinto o calor do sol inundar minh'alma. Não sinto muito
mais do que isso. É inverno nos trópicos. Pudera eu ser uma chave
on/off para que pudesse controlar a grossura dos líquidos que
escorrem das sensações. Não sei muito bem dizer onde estamos (e
deveria?), muito menos para onde vamos. Sei que essa estrada vai
indo. Não a caminho, ela me percorre como em uma esteira da estação
do metrô. Ou qualquer outra que funcione nesse mesmo sistema de
roldanas. Ou ainda, quem sabe, uma escada rolante qualquer, que um
dia já foi sinal de ostentação. Onde nasci, durante muitos anos
havia apenas uma dessas rolantes que subia nas lojas pernambucanas
porque pra baixo todo santo ajuda. E eu achava que aquelas bolas
laranjas em fios de alta tensão eram bolas de basquete. As
autoestradas deveriam funcionar assim, pit-stops de encruzilhadas
para dizer o melhor roteiro. Penso no tédio desse sábado à noite
e imagino as atendentes de telemarketing espalhadas por call centers,
em suas baias, com seus microfones acoplados ao fone de ouvido.
Queria, por um breve momento, que a aporrinhação do trabalho
pudesse ser consolo para alguma coisa. Ilusão. Meu olho tenta se
mover, mas ele fica parado pensando em figuras complicadas. Não
encontro mais o ponto em que a ternura se converte em teoria. Fico é
marcando o ponto. Eu não sinto mais nada, agora que não preciso
mais decidir o que fazer com toda essa ternura. Ternurinhas
formigadas. Ligo a tevê para ouvir o barulho da diversão enlatada,
concentrado pior que o de caldo knorr. O brilho azul dos pixies
atormentam a visão. Feito esse sorvete flamejante de cereja, a
aumentar o tédio. Amanhã é preciso acordar, apesar de domingo.
“Wake up is painful”, leio na legenda. Desligo em seguida. Dou um
suffle na música e na lista de contatos, em busca de alguma confusão
ou de algum barato total. Rádio toca “Woman is the nigger of the
world”. Hoje à noite eu não queria precisar lembrar que em média
duas mulheres por hora são vítimas de violência sexual: “Dados da Organização das Nações Unidas
(ONU) apontam para uma situação mais sombria se for levado em
consideração o número de mulheres vítimas de violência em geral.
Cerca de 70% das mulheres do mundo sofrem algum tipo de violência no
decorrer de sua vida, diz a organização. Em todo o mundo, uma em
cada cinco mulheres será vítima de estupro ou tentativa de estupro,
calcula a ONU.” Mas, Cássia, é impossível esquecer. A solidão
esvazia a cabeça e enche o coração. Sem essa de morde-e-assopra
nem de esconde-esconde. Não sou a cabra cega das paixões. Isso aqui
não é loteria, muito menos um bilhete premiado. No meu coração
eu fiz um lar. No vazio fico imaginando que cor terá se derreter.
Você não sente, também, uma certa paz, uma calminha à toa, ao
ouvir aquele momento de silêncio quando por um instante os carros
ficam parados no farol, o trânsito se suspende e não tem mais
buzina, nem ronco de motor, nem movimento passando rápido pelo canto
do olho?
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